Lendo o Mundo: As Boas Mulheres da China, Xinran

16:40 Carolina Carettin 0 Comments

As Boas Mulheres da China faz parte do Projeto Lendo o Mundo.


Em As Boas Mulheres da China (Companhia das Letras, 2007, R$27,90) a jornalista Xinran reúne relatos de chinesas que ligavam para seu programa de rádio Palavras na brisa noturna para contar suas histórias ou de mulheres que Xinran foi encontrando durante o período. A primeira história, por exemplo, chega a ela por meio de cartas e um diário que são deixados na redação.
A maioria das histórias é de mulheres que viveram durante o período da Revolução Cultural, implantada pelo presidente Mao Tse Tung entre 1966 e 1976. No comando desde 1949  e insatisfeito com seu próprio plano de governo, Mao tinha quatro objetivos, segundo o cientista político Kenneth Lieberthal, do Centro de Estudos Chineses da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos: corrigir o rumo das políticas do Partido Comunista Chinês, substituir seus sucessores por líderes mais afinados com o que pensava, assegurar uma experiência revolucionária à juventude chinesa, e tornar menos elitistas os sistemas educacional, cultural e de saúde. No período, o governo perseguiu intelectuais, professores e antigos membros do Partido; e criou grupos armados, os chamados Guardas Vermelhos. 
Dentro desse contexto é possível imaginar de que forma as mulheres estavam inseridas na sociedade. Há relatos de casamentos arranjados no período da Revolução Cultural; uma garota, Shilin, que é separada de sua família por questões políticas e fica mentalmente doente; garotas abusadas sexualmente por Guardas Vermelhos.

“Desde a sociedade matriarcal no passado remoto, a posição da mulher na China sempre fora a de nível mais baixo. Ela era classificada como objeto, como parte da propriedade, dividida como a comida, as ferramentas e as armas. Mais tarde foi autorizada a ingressar no mundo do homem, mas só podia existir aos pés dele (...). A história da China é muito longa, mas faz muito pouco tempo que as mulheres têm a oportunidade de se tornar elas mesmas e que os homens começaram a conhecê-las”. (p. 60)

Além de histórias marcadas pela Revolução Cultural, o livro mostra como a interação das mulheres com a sociedade e entre elas mesmas foi se modificando com o tempo. Xinran trata da relação das várias gerações de mulheres; jovens que trabalham como acompanhantes de grandes empresários para pagar os estudos; a relação da mulher com a religião; e passa até pela questão da homossexualidade.
Ao mesmo tempo, Xinran discorre sobre sua profissão. Ser jornalista na China quer dizer seguir o que o governo manda. Muitos assuntos, como a homossexualidade, são proibidos. Xinran não poderia demonstrar isso para seus ouvintes, por exemplo. Também era comum os jornalistas participarem de seminários de estudos políticos.

“Os princípios e o significado político das notícias eram repetidos incessantemente, e nenhuma aula estava completa sem alguma condenação de colegas por transgressões diversas: não anunciar os nomes dos dirigentes na ordem hierárquica correta num programa, fazer um comentário que tenha revelado incompreensão da propaganda do Partido, desrespeitar os mais velhos, não informar o Partido sobre um caso amoroso, comportar-se com ‘impropriedade’.” (p.103)

Dessa forma, a história de Xinran também se mistura com as das outras mulheres retratadas. Em um dos últimos capítulos ela discorre sobre sua infância e como foi e é sua relação com seus pais.
O último capítulo é crucial para a publicação do livro. Nele, Xinran conta o que encontrou quando foi visitar uma comunidade localizada na Colina dos Gritos. Os moradores não fazem ideia de como é a vida nas cidades, não há a menor perspectiva de mudar de condição social e ir para outros lugares. Uma das observações mais desconcertantes - tanto para a autora quanto para o leitor - é a de que as mulheres andam com as pernas abertas porque utilizam uma folha muito grossa como absorvente e acabam com as coxas em carne viva. Além disso, as mulheres sofrem do chamado “útero caído” devido a gravidezes sucessivas e vários partos. Elas são “usadas” por seus maridos e, para Xinran, contar a elas sobre como é a vida fora dali seria pior. Não saber que há uma vida melhor as faz sofrer menos. Depois dessa experiência, a autora decide se mudar para a Inglaterra, o que possibilita a publicação do livro.
Ao longo do livro, é possível refletir sobre algumas questões como: O que é ser uma boa mulher? É bom quando dizemos que uma mulher é forte?. Essa segunda questão aparece em um capítulo em que Xinran visita um orfanato criado por mães que perderam seus filhos. A primeira impressão que se tem é de que são mulheres guerreiras, fortes, que aguentam todas as adversidades da vida com a cabeça erguida. No fundo, são pessoas que sofrem com a perda de seus filhos todos os dias. Exalta-se a mulher forte como se suas fraquezas não pudessem existir, como se as dores e os sofrimentos remetessem a uma ideia de fragilidade que se tenta extinguir. 

“Sou uma dessas pessoas que são fortes na frente dos outros, uma fortaleza entre as mulheres, mas quando estou sozinha, choro a noite inteira - pela minha filha, pelo meu marido, pelo meu filho e por mim. Às vezes não consigo respirar, tamanha é a saudade que sinto deles. Há quem diga que o tempo cura tudo. A mim não curou.” (p. 95)

As Boas Mulheres da China é mais que um compilado de relatos, é um retrato das meninas e mulheres chinesas, seus anseios, medos e esperanças - mesmo em meio a tantas lágrimas - para o futuro.

A autora
Xinran nasceu em Pequim, China, em 1958. Trabalhou como jornalista e radialista. Hoje é escritora, colunista do jornal The Guardian e professora na School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres. 
Além de As Boas Mulheres da China, tem cinco livros publicados no Brasil, todos pela Companhia das Letras: Enterro Celestial, O que os Chineses não Comem, As Filhas Sem Nome, Mensagem de uma Mãe Chinesa Desconhecida, Testemunhas da China.

Outros autores chineses para conhecer
Yu Hua: Viver; Irmãos; Crônica de um Vendedor de Sangue
Jung Chan: Cisnes Selvagens
Dai Sijie: Balzac e a costureirinha chinesa
Gao Xinjian: A Montanha da Alma
Ha Jin: A Espera; O ensandecido; Refugo de Guerra
Chan Koonchung: Os anos de fartura
Ma Jian: Pequim em Coma; A cozinha da revolução
Su Tong: A mulher que chora
Yan Lianke: A serviço do povo
Ting Xing Ye: Meu nome é número 4

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